Revista Entrevip

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Psicologia e Perinatalidade: A maternidade e seus enigmas

Segunda 08 de Maio de 2017

Por: Sabrina Gomes Camargo

O processo de tornar-se pai e mãe não se inicia com a confirmação de uma gravidez.  É um longo percurso que começa na infância de cada um dos pais e na relação que estes puderam ter com seus próprios pais. O ato do brincar e as fantasias adolescentes nos indicam que as representações parentais antecedem longamente a gestação. Desta forma, tornar-se pai e mãe vai muito além do laço consanguíneo, já que não é este que assegura o exercício da parentalidade.

Desde o brincar de boneca e casinha na infância, passando pelas fantasias da adolescência até os planos de conceberem um filho, uma rede de sonhos, desejos, expectativas vão sendo tecidas em torno de um bebê. Enquanto para pai, o bebê se constitui como objeto externo desde a concepção, a mãe está fisicamente envolvida: é dentro dela que este bebê se desenvolve, é nela que acontecem as mudanças corporais.

A maternidade faz uma ponte entre passado e futuro, resgatando as vivências infantis de cada um dos genitores e sua relação com seus pais e as expectativas de como este bebê será no amanhã. Desta forma, as representações parentais sobre o bebê envolvem ideias inconscientes que os pais têm a partir de sua própria história, construções produzidas pelo casal a partir do sexo do bebê, dos traços físicos e de personalidade e representações de seus ideais, ou seja, como desejam que a criança seja.

 

Estas representações são importantes, pois influenciam nos diferentes tipos de vínculos que serão criados entre o bebê e seus pais, podendo facilitar a construção de uma relação segura ou mesmo dificultar este processo. É importante enfatizar que não são só afetos positivos que marcam a chegada de um bebê. Afetos ambivalentes também estão presentes já que um filho provoca uma ruptura na relação conjugal, a partir do momento em que o pai pode se sentir excluído da relação mãe-bebê ou mesmo a mãe não se sentir confortável no exercício da maternidade.

Assim, ter um filho envolve desejos que são conscientes, por exemplo, deixar descendentes até desejos inconscientes. O fato é que o nascimento de uma criança provoca transformações profundas e irreversíveis no psiquismo dos pais. Enquanto a mãe está física e psiquicamente envolvida com o nascimento do bebê, cabe ao pai mediar esta relação. Se nos primeiros meses, a mãe precisa dedicar-se exclusivamente aos cuidados com o filho oferecendo-lhe um ambiente afetivo e sensível, aos poucos, com o crescimento e desenvolvimento deste, ela precisa se afastar, investir em novas atividades em benefício dela e do bebê.

A vivência da maternidade não é instintiva, tampouco naturalizada. Diferente do que é propagado na mídia e nas redes sociais, de que a maternidade é um estado pleno e que não comporta tristeza, a maternidade é sim enigmática e resultado de um longo trabalho de elaboração do psiquismo. O amor materno não é inerente às mulheres. É um sentimento que pode ou não existir, pode mostrar-se forte ou frágil. A experiência da maternidade não é reproduzível, não ocorre da mesma forma com todos os filhos, nem sempre acontece de forma alegre e nem sempre pode acontecer. É algo único, singular, construído a partir da história de vida de cada um.

No entanto, pensar e elaborar este processo fica em segundo plano diante de outras prioridades que os pais, principalmente a mãe colocam para si. Assistimos, nos dias de hoje, um “culto ao parto”, uma verdadeira idealização deste momento, em que os pais debruçam-se sobre detalhes de filmagem, decoração da maternidade, coquetel para recepção do filho deixando de lado o próprio bebê. A maternidade nos obriga a planejar uma existência para além de nossa própria. Criar um ser humano é a maior tarefa que uma pessoa pode ter na vida.

Por tudo o que colocamos anteriormente, o nascimento de um filho pode ser mobilizador de profundas ansiedades. A perda da condição de gestante é rápida e dolorosa. O trabalho de uma puérpera é desgastante e monótono. O bebê é muito exigente e impiedoso com os horários. Este encontro com o bebê real diferente do bebê imaginado pode trazer afetos de tristeza, necessidade de isolamento, sensação de vazio e perda. Dificuldades para amamentar, para se organizar com os horários, ausência de rotina, pouco sono, esta é a realidade da mãe de um bebê. E deparar-se com esta incompletude quando se esperava realização e plenitude não é fácil.

Isto explica a incidência cada vez maior de tristeza puerperal. Podemos nomear a tristeza no pós-parto de três formas: baby blues, depressão pós-parto (DPP) e psicoses pós-parto. O baby blues é a alteração emocional mais frequente, aparecendo a partir do terceiro dia e acometendo de 50% a 70% das puérperas. Caracteriza-se pelo sentimento de tristeza, choro, emotividade, ansiedade, preocupações exageradas quanto à lactação, que não comprometem as atividades da mãe. Dura aproximadamente duas semanas, geralmente não exige intervenção profissional e a frequência nos faz pensar que se trata de uma reação diante de um processo adaptativo, ou seja, uma resposta do corpo diante das novas tarefas e das novas relações que se apresentam para a mãe. Já a depressão pós-parto (DPP) acomete entre 10% a 20% das mulheres, começando na primeira semana após o parto e perdurando até dois anos. Os sintomas mais comuns são tristeza prolongada, irritabilidade, mudanças bruscas de humor, indisposição, doenças psicossomáticas, desânimo com as atividades do dia-a-dia, desinteresse e sensação de incapacidade de cuidar de um bebê até pensamentos suicidas e homicidas em relação a ele. O que diferencia o baby blues da depressão pós-parto é a intensidade e duração dos sintomas. Já a psicose pós-parto incide em menos de 5% das mães trazendo alterações de humor, perda do sentido da realidade, ideias delirantes e alucinação. Na maioria das vezes, puérperas com psicose já apresentaram quadros psicóticos anteriores. O risco de suicídio e infanticídio é muito alto necessitando de intervenção profissional urgente com vigilância familiar constante e, por vezes, afastamento do bebê.

Há um tabu social em relação ao tema gestação e depressão, como se a chegada de um bebê não permitisse o estar triste. O processo de transformação psíquica que sofre uma mulher no ciclo gravidez-puerpério envolve três momentos: transformação da filha em mãe, transformação da imagem corporal e a relação entre sexualidade e maternidade. O puerpério caracteriza-se por uma dualidade entre o perdido – a gravidez e o adquirido – o bebê. Desta forma, no inconsciente, a mãe vivencia o parto como uma perda. O parto é vida, ao trazer um novo ser, mas também morte, porque a mãe precisa deixar para trás a condição de gestante e romper a relação simbiótica com o bebê como parte integrante dela mesma.

Como o psiquismo de cada mulher vai se comportar numa gestação e pós-parto, é impossível dizer. Sabemos que algumas mulheres passarão por este momento sem maiores dificuldades, outras necessitarão de ajuda profissional. Ao psicólogo cabe fazer uma escuta atenta desta mãe, ouvir suas representações sobre o bebê, a sua história de vida, suas redes de apoio, o lugar atribuído ao pai nesta relação, a fim de intervir precocemente em sua saúde mental. O exercício da parentalidade tem efeitos sobre a construção subjetiva da criança e a maneira como as representações em torno deste bebê serão construídas pode nos indicar dificuldades ou não na relação mãe/pai-filho podendo vir a comprometer o estado emocional deste pequeno ser.

Sabrina Gomes Camargo - Psicóloga – CRP: 03/03497

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